domingo, 4 de dezembro de 2016

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, ABORTO COMO TEMÁTICA DE POLÍTICA PÚBLICA E O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

   Imagem: Ma Femme nue regardant son propre corps devenir marches d'escalier, trois vertèbres d’une colonne, ciel el architecture (Detalhe). Artista: Salvador Dalí (1945)


Prezados,

Cumpre chamar a atenção para a recente decisão proferida no HC nº 124.306-RJ, considerando a íntima relação desta com a matéria objeto de preocupação da pesquisa e de todos nós, qual seja, em última análise: a dignidade da pessoa humana. Em apertada síntese, o decisum reconheceu a autonomia da gestante em optar por aborto até o terceiro mês de gestação, conferindo, hermeneuticamente, uma interpretação conforme a Constituição dos dispositivos penais (arts. 124-126 do CP/1940) sobre a temática.

Consoante é sabido, inicialmente, o controle de constitucionalidade no Brasil ocorre por duas vias quanto ao momento, isto é, o controle de constitucionalidade preventivo e o repressivo. O controle preventivo se dá através do Poder Legislativo, em sede de Comissões de Constituição e Justiça (CCJ's), que analisam o projeto de lei apresentado pelos parlamentares, emitindo parecer acerca da observância, ou não, das normas constitucionais. Isso se dá antes da votação dos projetos de leis (controle prévio).

Já o controle repressivo se dá por meio do Poder Judiciário, após aprovação da lei e sua entrada no ordenamento jurídico. O controle repressivo, por sua vez, se divide em duas categorias, a saber: controle difuso e controle concentrado. O controle difuso ocorre quando qualquer juiz ou Tribunal (inclusive o próprio STF) analisa a compatibilidade do dispositivo com o ordenamento jurídico, o que se dá, em regra, diante de situação concreta. O controle concentrado, por seu turno, ocorre independentemente de um caso concreto, podendo-se declarar a inconstitucionalidade de uma lei por meio de ações específicas, isto é, ações diretas de inconstitucionalidade genéricas, interventivas ou omissivas, além da ação declaratória de constitucionalidade. De acordo com o artigo 103 da CF são legitimados para a propositura das ações declaratória de constitucionalidade (ADC) e direta de inconstitucionalidade (ADI) e, por equiparação, arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF):

Art. 103. Podem propor a ação direta de inconstitucionalidade e a ação declaratória de constitucionalidade: 
I - o Presidente da República;
II - a Mesa do Senado Federal;
III - a Mesa da Câmara dos Deputados;
IV - a Mesa de Assembléia Legislativa ou da Câmara Legislativa do Distrito Federal; 
V - o Governador de Estado ou do Distrito Federal; 
VI - o Procurador-Geral da República;
VII - o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil;
VIII - partido político com representação no Congresso Nacional;
IX - confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional (BRASIL, 1988).

No caso concreto, o Habeas Corpus, enquanto remédio constitucional, não é a via eleita tradicional para o controle de constitucionalidade concentrado. Contudo, o que se nota é que o Ministro Barroso, materialmente utilizou o HC, para promover adequação hermenêutica, de acordo com regra de interpretação conforme a Constituição, dos dispositivos penais que tratam sobre a temática do aborto consentido. Assim, o Ministro Barroso interpretou os dispositivos penais à luz dos direitos fundamentais das mulheres, explícita e implicitamente contidos na própria Constituição Federal, em sede de controle de constitucionalidade difuso. 

O efeito produzido, a priori, é apenas inter partes, ou seja, alcança apenas os envolvidos no processo. Entretanto, a repercussão da matéria se reveste de relevância, pois é a primeira manifestação do STF, mesmo sendo por um órgão fracionário (1ª Turma), sobre o tema, configurando o primeiro precedente sobre a questão. Além disso, cumpre lembrar que, embora seja uma decisão limitada às partes envolvidas no HC, de acordo com o novo Código de Processo Civil Brasileiro, a jurisprudência vem se fortalecendo, a exemplo do que se verifica nos países de sistema common law. Trata-se, com efeito, de um fenômeno que doutrinariamente vem sendo denominado de “commonlização” do Direito Brasileiro, de acordo com o constitucionalista Lenio Streck.

 O voto-vista apresentado pelo Ministro Luís Roberto Barroso, acompanhado na íntegra pelos Ministros Rosa Weber e Luiz Edson Fachin (formando maioria da Primeira Turma), revigorou o debate sobre o aborto consentido pela gestante e seu reconhecimento como assunto atinente à saúde pública, a exemplo de outros países tradicionalmente considerados democráticos e desenvolvidos, a exemplo dos E.U.A., Alemanha, Canadá, França, Itália, Espanha, Portugal, Holanda e Austrália. Neste aspecto, Barroso externou que a tradicional criminalização do aborto, no primeiro trimestre de gestação, viola diretamente os direitos fundamentais da mulher, tais como: direitos sexuais e reprodutivos, integridade física e psíquica da gestante e a igualdade da mulher.

Igualmente, o julgamento no HC supra coloca em debate os impactos dos dispositivos penais analisados, porquanto reaviva a questão dos reflexos da criminalização de tal realidade sobre mulheres pobres. Ora, tratar como crime a situação, tal como ocorre no ordenamento brasileiro, obsta que as mulheres, que não possuem condições de acessar médicos e clínicas privadas, recorram ao sistema público de saúde para se submeterem aos procedimentos cabíveis. Barroso afirma que a política tradicionalmente criminalizadora da temática na legislação penal apenas traz como consequência a multiplicação dos casos de automutilação, lesões graves e óbitos.

Barroso, ainda, argumenta que a decisão não tem o escopo de promover uma disseminação da interrupção da gravidez, mas sim tornar o procedimento raro e seguro por meio da oferta de educação sexual e distribuição de contraceptivos. Trata-se, de fato, de reconhecer que o aborto como questão de saúde pública, no cenário caótico apresentado pelo Brasil, é assegurar o mínimo de dignidade às mulheres que, mesmo havendo a figura típica penal, se submetem diariamente a tal prática, valendo-se dos “serviços” prestados por clínicas clandestinas e aumentando o número de vítimas mutiladas, lesionadas ou mesmo mortas em razão da omissão do Estado sobre a questão. O debate se reveste de máxima importância e sua relevância é reconhecida por pesquisadores internacionais, como é o caso do Prof. Dr. Daniel Borrillo, que a este respeito escreveu para a líder do Grupo de Pesquisa em Direitos Fundamentais/UFF e outros estudiosos, dizendo:

Sentencia del tribunal supremo de Brasil sobre la penalizacion de l'IVG


Caros e caras,

Acabo de leer detenidamente la sentencia del Superior Tribunal de Brasil, que declara inconstitucional la penalización del aborto. Pocas veces he leído una sentencia que ponga blanco sobre negro las cosas de una manera tan extraordinaria; habla sin tapujos, y con bases jurídicas impecables. Creo que tenemos la obligación de difundirla para que todos la conozcan.

Abrazos,

          Prof. Dr. Daniel Borrillo
Profesor de derecho en la Universidad de Paris Ouest, investigador del Centre d’études en sciences administratives et politiques, CNRS Paris, perito de la Unión Europea en materia de igualdad y no discriminación.

Nesse sentido, este texto objetiva difundir esta significativa decisão do STF, o que se realiza por meio da divulgação do voto-vista do Ministro Luís Roberto Barroso.

Para a leitura do voto-vista, clique aqui.


Cordialmente,


Célia Barbosa Abreu
Pós-Doutorado pelo Programa de Pós-Graduação em Direito/UERJ
Doutora e Mestre em Direito Civil/UERJ
Docente Permanente do Mestrado em Direito Constitucional/UFF
Professora Adjunta do Departamento de Direito Privado/UFF
Líder dos Grupos de Pesquisa em “Direitos Fundamentais/UFF” e em “Saúde Mental, Direitos Humanos e Desenvolvimento/UFF”

Pedro Paulo Carneiro Gasparri
Mestre em Direito Constitucional pela Universidade Federal Fluminense
Especialista em Direito Processual pela PUC-RIO
Especialista em Direito Público e Privado pela EMERJ
Graduado em Direito pela PUC-RIO
Graduado em Ciências Econômicas pela PUC-RIO
Integrante do Grupo de Pesquisa em “Direitos Fundamentais/UFF”

Tauã Lima Verdan Rangel
Doutorando do PPG em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense
Mestre em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal Fluminense
Especialista em Práticas Processuais pelo Centro Universitário São Camilo-ES
Graduado em Direito pelo Centro Universitário São Camilo-ES
Integrante do Grupo de Pesquisa em “Direitos Fundamentais/UFF”
Vice-Líder do Grupo de Pesquisa em “Saúde Mental, Direitos Humanos e Desenvolvimento/UFF”